Santuário do Caraça

À pergunta - o que é o Caraça? - poderíamos responder:
um conceito de vida, uma forma de existir, uma filosofia tanto mais real quanto mais poética.
{ Henriqueta Lisboa }


Revelo aqui um pouco da potência da vida exuberante que um lugar pode guardar. Sempre haverá o que experimentar, (re)conhecer e com o que se deleitar no Caraça, desde o nítido esplendor da flora e fauna até os meandros da história da construção e da vida do santuário. Nesse espaço virtual faço a minha tentativa de dar forma ao alumbramento dos dias que vivi por lá – e que permanecem vibrando em mim.


quarta-feira, 1 de maio de 2013

O Santuário

A claridade mansa espalhada sobre as pedras alcança a construção antiga do Santuário e impregna suas estruturas – mesmo nos domínios onde o breu é a ordem, persiste a maciez como de musgos. Eu caminho sobre o piso de madeira larga, lisa de tão encerada, e toco as paredes do corredor com muda avidez: naquele interior monástico, a calidez dos materiais emerge pagã e envolvente. Tateio as superfícies atenta à realidade que elas engendram, e sei que exsudam também a paciência das pedras do rio - de dentro pra fora, a seiva das coisas se destila rumo à celebração de um encontro com o exterior. O que permanece é o que desejo com voracidade de dentes (minha carne transubstanciada em fome sem corpo – o instante entre as mãos e a argila mole), trazendo à tona minha necessidade de morder para sentir a consistência que resiste se entregando daquilo que alcança meus ossos num estremecido calafrio de felicidade. O que permanece está ao meu alcance: oferenda - sobre pedras, mesas, vasos, líquens – o mundo se expõe ofertado e viçoso.

Perambulando pelas dependências internas do Santuário, é pelo tato que eu me nutro daquela espécie de halo das coisas, e vislumbro o que parece ser uma organização: só se poderia viver naquele lugar sendo nítido, puro, pleno como uma árvore - e no entanto há camas, lençóis, há talheres e toalhas. A água de banho é aquecida - mas jamais incolor: na porcelana da pia eu vejo a água do rio, sua cor de chá; sinto na pele sua textura mais íntima, oleaginosa. O doce dessa água - desses rios – é húmico e ferroso, e suas nuances vão do vermelho ao âmbar, do intenso ao esmaecido. Os alimentos servidos no refeitório são batizados como eu nessa água, e a água benta espargida pelo padre durante a missa... é sempre a rupestre água, desenrolada no fundo da terra, e que faz da missa, da hóstia e da igreja um eufemismo dispensável pra mim.

O improfanável – eis a pedra fundamental desse reino ao qual me uno através do hálito irradiado de todas as coisas desse lugar.

A noite dentro do quarto é maciça e impermeável sob o peso do adobe das paredes – a arquitetura lúcida atravessa o meu sono e eu durmo sem sonhos – como as pedras.


terça-feira, 30 de abril de 2013

Pátio

A despressurização de que se faz o pátio.
Explosão de luz, cores e formas a perturbar a visão habituada à contida rotina subterrânea dos corredores. Vegetais minuciosamente esculpidos e floreiras com terra revolvida e ainda fresca revelam o trabalho feliz e concentrado do homem a manusear a luxúria, dominando-a.
Modelando-se.

Embevecido é o olhar do monge para as florações trêmulas do pátio:
o homem contemplando
a mulher por ele fecundada.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Invólucro Florido

O pátio: habitação da precedência anunciada. E o acurado jardim atravessado a passos curtos e sem repouso: não há assentos nesse espaço lapidado (embora as pedras sejam dorsos mansos oferecendo-se à carícia das mãos) que permitam mais do que estar de passagem. Devaneios de contemplação são vivenciados com o corpo em movimento durante a travessia. De passos e circunspecção se faz a presença oculta, cúpula aberta no centro do claustro, entremeada por camélias tenras que aquecem a luz esverdeada abandonada pelos cantos umedecidos de musgos. Eternizado pelo relógio de sol, o líquen do tempo avança enquanto o interior das celas que ladeiam rasteiras o jardim vai se alquebrando.

O olhar túrgido, habituado à tepidez dos corredores e dos quartos, se contrai diante da claridade condensada em volta da terra cultivada e se distende para além das grades dessas celas sombrias, despovoadas. Pássaros sulcam a latência do ar e insetos vibram por baixo de espessas verduras – o jardim engendra e guarda em seu bojo o grão mais precioso do santuário: as catacumbas.

Formoso e astuto modo de emoldurar (enfatizando e protegendo) o reduto sagrado! Sob a terra que ostenta a florescência cálida do jardim, por baixo da madeira dos corredores, escorando as gavetas nomeadas do túnel fúnebre - a raiz opaca exposta, desdobrada aos nossos pés. Eis o tesouro resguardado: o afloramento rochoso respirando, veio nu preservado na escuridão, estirpe do mundo que precede o pensamento – fornalha vital sobre a qual se equilibra a arquitetura inteira do santuário.

domingo, 28 de abril de 2013

Calvário Vivo

Há sim o calvário erigido que é instantâneo para todos os dias, e nele o sol seco se arrasta ácido e as pedras são adornos áridos, mortos. Os crucifixos imponentes nomeiam o percurso, ostentam o esforço de sustentar o céu e os olhares e o cansaço. Sempre acima dos homens, o martírio da cruz é guiá-los ao amortecimento de seus sentidos sem contudo permitir-lhes o esquecimento: cada cruz é a palavra desferida forjada na memória da carne. A cruz autoritária, entristecida. O calvário nomeado, verdugo dos homens ingênuos que gozam o padecer sob uma intenção alheia.

E há o Calvário, trilha dos fundos desbravada muito antes da idéia do calvário-maquete. No entanto a via é esguia, indomada, e o solo ecoa surdo como fina crosta compactada sobre um vasto vazio. Incrustado nas montanhas, o Calvário natural leva à Capela desativada, localizada longinquamente acima do mundo construído do Santuário – deste, a visão da Capela é irreal e sem contornos, uma pintura pálida. A Capela desativada, esmaecida e manchada como uma antiga janela que não se abre mas guarda ainda a beleza misteriosa daquilo que se inutilizou sem se estragar. Olhos fechados voltados para sempre aos homens – Capela onírica, estátua brotando da vegetação – flor estrangeira que se adaptou sem ser incomodada.

Tortuoso e úmido é o acesso perfumado pelas folhas secas maceradas à terra pastosa e a pedriscos finos. O emaranhado vegetal enrosca-se ao corpo liso de suor frio do peregrino; insetos ocultos crepitam, flores e madeiras exsudam resina adocicada mas as sombras são amargas e frescas. Vivas de musgo, as pedras acompanham a peregrinação, sendo por vezes o chão em que se firma o passo, o degrau improvisado, o apoio às mãos, o perigo escorregadio. Há trechos em que a crista estreita dos rochedos é a única passagem, existindo ao lado do corpo alerta apenas a queda iminente no espaço profundo forrado de copas de árvores. Eis pois o verdadeiro Calvário, aquele que desperta as fibras corpóreas e a atenção a cada passo vencido, e consome do homem o corpo intumescido pelo acúmulo de cruzes e impurezas. Não há desafio nem promessa, não há esperança: aquele que avança não mais pertence à medida humana - sua bagagem urbana desintegra-se em contato com a atmosfera do Calvário. Abandona-se o pensar: o peregrino é o moto-contínuo em si, energia que gera a si própria e de si se nutre.

Não há a expectativa do encontro: quem insiste na subida pelos fundos não precisa de remição. Imiscível, sublimado, indivisível é o que do homem chega à Capela: protoplasma.


sábado, 27 de abril de 2013

Capela

Quando então de tanta impessoalidade não se sente mais a humanidade do corpo – surge à luz a Capela desativada. Não de frente: obliquamente chega-se a ela, a de olhar opaco e distante a perscrutar outras paisagens. Espanto, deslumbramento, alívio – nem mesmo alegria a ermida provoca. Ela não destoa da natureza e não agride os sentidos – mas causa um estranhamento o seu tamanho, revelador da intenção de quem a construiu: materialização para ser vista de longe, de baixo – para ser contemplada à distância. Seu corpo é robusto, o porte é altivo e modestamente indiferente. A cal das paredes está manchada de faixas escuras e pungentes. Hermeticamente inacessível é a sua presença ainda que o exterior esteja ao alcance das mãos. Espalha ao redor de si a coroa de silêncio composto pela passagem do ar – o ar passando é mais tangível, real e menos delicado do que a Capela. 

A luz, leve e fina, e o ar, saturado de verde morno, estão ligados à Capela por uma vida tênue – um fio invisível a perpassá-los, a vida que se manifesta de modos diferentes no mesmo grande organismo que são. 

Não é o olhar do homem que faz dela a Capela; nem o nome, tampouco sua arquitetura, sinal precário a apontar uma função (há muito abandonada) – mas sim essa vida que em tudo está infiltrada e que ali eclode numa perpétua ação palpável e imóvel: existência plena e atonal, independente do mundo humano. 

Gritos de aves irradiam-se dentro da Capela, a rouquidão áspera inunda o interior pressentido, rasgado pelo grito seco, sem vazar e se misturar ao lado de fora. Revestida de infinitos começos e fins, sua poeira e penumbra são o reino de anseios pulverizados movendo-se na viscosa suspensão do espaço inabitável. 

 A Capela fecha-se sobre si, velando-se. Sua existência acumulando-se em espiral. 

Capela concha modelando o molusco tempo.